Uma Carniça (As Flores do Mal) - Charles Baudelaire
Publicado em 1857, As Flores do Mal é um volume de poesia dividido em seis partes temáticas. Aqui trataremos especificamente do poema “Uma Carniça” (Une Charogne), presente na primeira edição; em edições subsequentes alguns poemas foram readicionados à obra, após terem sido censurados na primeira por seu conteúdo. No poema o eu-lírico anda por uma estrada com sua amada quando encontram o corpo morto de um animal à beira do caminho. O cadáver é descrito com perturbadores detalhes: sua putrefação, o cheiro, os vermes, os gases que escapam de dentro da carcaça sem vida. Uma cadela espera ao canto para poder voltar a se alimentar da carne fétida. O eu-lírico, então, se depara com a realidade de que sua amada um dia também será igual à carniça na beira do caminho: permanecerão apenas a essência e a lembrança daquilo que já foi carne.
Uma Carniça
Recorda o objeto vil que vimos, numa quieta,
Linda manhã de doce estio:
Na curva de um caminho uma carniça abjeta
Sobre um leito pedrento e frio,
As pernas para o ar, como uma mulher lasciva,
Entre letais transpirações,
Abria de maneira lânguida e ostensiva
Seu ventre a estuar de exalações.
Reverberava o sol sobre aquela torpeza,
Para cozê-la a ponto, e para,
Centuplicado, devolver à Natureza
Tudo quanto ali ela juntara.
E o céu olhava do alto a soberba carcassa
Como uma flor a se oferecer;
Tão forte era o fedor que sobre a relva crassa
Pensaste até desfalecer.
Zumbiam moscas sobre esse pútrido ventre,
De onde em bandos negros e esquivos
Larvas se escoavam como um grosso líquido entre
Esses trapos de carne, vivos.
Isso tudo ia e vinha, como uma vaga,
Ou se espalhava a borbulhar;
Dir-se-ia que esse corpo, a uma bafagem vaga,
Vivia a se multiplicar.
E esse mundo fazia a música exquisita
Do vento, ou então da água-corrente,
Ou do grão que, mexendo, o joeirador agita
Na joeira, cadenciadamente.
As formas eram já mera ilusão da vista,
Um debuxo que custa a vir,
Sobre a tela esquecida, e que mais tarde o artista
Só de cór consegue concluir.
Entre as rochas, inquieta, uma pobre cadela
Fixava em nós o olhar zangado,
À espera de poder ir retomar àquela
Carcaça pobre o seu bocado.
— E no entanto, hás de ser igual a esse monturo,
Igual a esse infeccioso horror,
Astro do meu olhar, sol do meu ser obscuro,
Tu, meu anjo, tu, meu amor!
Sim! tal serás um dia, ó tu, toda graciosa,
Quando, ungida e sacramentada,
Tu fores sob a relva e a floração viçosa
Mofar junto a qualquer ossada.
Dize então, ó beleza! aos vermes roedores
Que de beijos te comerão,
Que eu guardo a forma e a essência ideal dos meus amores
Em plena decomposição!
Tradução de Guilherme de Almeida.
(In: Almeida, Guilherme de. Flores das flores do mal. São Paulo: Editora 34, 2010).
Charles Baudelaire, nascido em Paris, em 1821, tratava, por meio de temas como a morte, a embriaguez, da fugacidade da vida, fortemente influenciado pelos desenvolvimentos dos tempos modernos em uma grande cidade como Paris. Além de poeta, Baudelaire foi um ensaísta e jornalista, em adição a ter sido um dos primeiros a traduzir os trabalhos de Edgar Allan Poe para o Francês. Ele foi um personagem de excessos; veio de família abastada, mas na vida adulta foi sempre incapaz de manter emprego fixo e era conhecido por estar sempre endividado e embriagado. Ele morreu em 1867, anos após sofrer um derrame decorrente de sua vida de excessos.
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Fonte |
A temática da morte como representação dos sofrimentos do homem moderno, da finitude da vida e da inevitabilidade do fim, sempre hão de nos fascinar. A obra de Baudelaire é marcada justamente por tratar desses temas de maneira tão visceral e explícita. É interessante como suas descrições, por mais que sejam de coisas pútridas, seguem belas em sua sonoridade. O site https://fleursdumal.org/ compila, além dos textos completos de todas as edições de Flores do Mal, múltiplas traduções para a língua inglesa, e leituras, sobretudo em francês, dos poemas de Baudelaire. Mesmo para quem não fala a língua, é interessante ouvir as leituras acompanhadas de uma tradução.
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